"Now the Spirit speaketh expressly, that in the latter times some shall depart from the faith, giving heed to seducing spirits, and doctrines of devils; Speaking lies in hypocrisy;having their conscience seared with a hot iron;"1 Timothy 4:1-2

quinta-feira, 17 de março de 2011

Cataclismo nuclear


A tragédia no Japão nos faz pensar sobre a segurança de usinas nucleares. Não será uma surpresa se, nos próximas meses e anos, depois de ter experimentado um período de discreta simpatia popular por causa das preocupações com a mudança climática, a energia de matriz termonuclear sofrer reveses na opinião pública.

Não sou um especialista na matéria nem tenho uma opinião muito veemente acerca da fissão do urânio, mas arrisco dizer que a primeira providência para que o debate seja produtivo é nos livrarmos de alguns preconceitos.

Comecemos, então, analisando o que ocorreu no Japão. Se o noticiário que li é preciso, a primeira constatação é que estamos diante de um sucesso de engenharia civil. A estrutura das usinas, afinal, suportou bem um terremoto de 9 graus na escala de magnitude de momento (a mensuração inicial de 8,9 foi revista) --energia equivalente a 9,32 teratons de dinamite, ou 600 milhões de bombas de Hiroshima--, o que é algo próximo do pior cenário imaginado para esse tipo de construção. Vale ainda lembrar que o tremor deslocou o eixo de rotação da Terra em cerca de 25 cm e fez a ilha de Honshu, a principal do arquipélago, se mover 2,4 m para o leste. Ou seja, estamos aqui falando de forças numa escala muito além da humana.

Como o diabo mora nos detalhes, as usinas enfrentaram problemas não por causa do tremor propriamente dito, mas sim dos tsunamis, que acabaram inutilizando os vários sistemas de resfriamento dos reatores. Não me parece que seja um problema que os engenheiros não possam resolver, ainda que isso acabe tornando a energia nuclear mais cara. Sou capaz de apostar que, dentro de pouco tempo, as plantas japonesas remanescentes já estarão adaptadas. Eles não têm opções de sobra por ali.

Embora essas minhas declarações iniciais possam ser interpretadas como uma defesa da matriz nuclear, reitero que tenho dúvidas. Afinal, é sempre possível imaginar um tremor ainda mais forte, ou cujo epicentro se localize mais perigosamente próximo à usina. E movimentos sísmicos não são o único risco da operação, como o provam Three Mile Island e Tchernobil.

Quanta segurança devemos exigir para considerar o sistema seguro? Devemos ou não, como o incorrigível Mahmoud Ahmadinejad, seguir apostando na energia atômica?

A dificuldade em discutir racionalmente a questão nuclear tem origem neurológica, como mostram os trabalhos dos especialistas em avaliação de risco Paul Slovic e Melissa Finucane. No mundo real, o benefício de uma tecnologia e os perigos a ela intrínsecos são variáveis que tendem a estar positivamente correlacionadas. Em linguagem mais direta: quanto mais útil, mais arriscado. Nossas mentes, contudo, funcionam ao contrário, correlacionando negativamente as percepções de risco e benefício.

Um experimento de Finucane de 2000 que tinha por tema justamente a energia nuclear é esclarecedor. Ela conseguiu demonstrar que a relação afetiva que temos com um objeto altera a percepção dos perigos que ele acarreta. Assim, se achamos que os benefícios proporcionados pela energia nuclear são altos, tendemos a menosprezar seus riscos, ainda que essa vinculação não tenha amparo lógico. Inversamente, quem não vê utilidade nas usinas atômicas tende a magnificar seu grau de ameaça.

Mais do que isso, manipulando uma das pontas conseguimos alterar as percepções relativas à outra. Se submetermos alguns humanos a informações que enaltecem os benefícios da energia nuclear, fazemos com que eles produzam declarações que minimizam o risco, ainda que não haja conexão causal entre as duas. Quem providenciar nos próximos dias uma pesquisa sobre a segurança nuclear certamente captará esse efeito.

Vale observar que as interferências de uma heurística do afeto não dizem respeito apenas à percepção de risco, mas também a várias outras atividades humanas, notavelmente a política, a religião e o futebol.

Uma explicação possível para isso está no fato de os neurônios se conectarem em redes que podem ser ativadas por contiguidade semântica, interligando ideias, conceitos, impulsos, memórias, sentimentos e emoções. Basta evocar uma palavra de fortes conotações negativas como "perigo" ou "terror" para nos despertar sensações desagradáveis as quais, mesmo que não nos demos conta, influenciam nossas decisões. É o que os psicólogos cognitivos chamam de "priming". E, se temos um sentimento robusto por alguma coisa, modificá-lo exigirá doses cavalares de estímulos (ou argumentos) contrários.

Há mais. Sempre que uma conexão é ativada, ela inibe o acionamento de redes alternativas que possam existir. Uma implicação interessante é que o viés do torcedor (ou do militante, ou do fiel) em favor de seu clube (ou de seu partido, ou de seu Deus) não é necessariamente mau-caratismo. Ele de fato percebe o mundo de forma menos objetiva nessas questões.

Na verdade, há experimentos sugestivos de que a pessoa ativa seu centro de recompensa sempre que deixa de "perceber" um fato desfavorável a sua causa, num mecanismo de reforço não muito diferente do de viciados em drogas. Trocando em miúdos, sentimos prazer sempre que erramos a favor de nosso clube, partido ou Deus.

O leitor apressado a essa altura já está concluindo que a própria noção de debate e troca de argumentos é impossível, diante do solipsismo humano. Menos, menos. A primeira coisa a considerar quando se evocam esses modelos é que eles são apenas modelos, ou seja, simplificações mais ou menos grosseiras da realidade anímica, que nos permitem prever tendências, mas quase nunca dar conta da totalidade dos casos.

Para dar concretude ao que digo: nem todo corintiano deixa de perceber quando nosso beque passa uma rasteira no adversário dentro da área. O que o modelo faz é explicar por que proporcionalmente mais corintianos do que torcedores do outro clube não veem o pênalti. A diferença é, por assim dizer, epidemiológica.

Como esse gênero de fenômeno tende a ter uma distribuição normal, resta que uma parte (pequena) da humanidade é de fato invulnerável a argumentos. A maior fatia tem um sistema forte de inclinações e fidelidades, mas é capaz de dobrar-se ao peso das evidências (ou manipulações), desde que apresentadas de forma convincente. Há um terceiro grupo, também pequeno, que não tem opinião sobre quase nada e muda de posição como uma biruta de aeroporto. São os radicais de centro. Ganham um peso desproporcional nas democracias maduras, em que as preferências políticas costumam estar divididas em dois blocos de tamanhos comparáveis.

Forjar maiorias, entretanto, não é tudo. Há um outro fator que torna os debates importantes. Como mostram Ori e Rom Brafman em "Sway: The Irresistible Pull of Irrational Behavior", a existência de pessoas "do contra" ("dissenters", em inglês) é importante para evitar que caiamos na armadilha da unanimidade (uma das poucas forças capazes de fazer uma pessoa ir contra o óbvio mesmo diante de sua cara). A figura do "dissenter", embora possa produzir fricções de alto custo emocional para todas as partes envolvidas, também costuma levar a maioria a reformular seus argumentos (ou projetos), de modo a responder a objeções percebidas como relevantes. Essa dinâmica fica particularmente clara em situações como a de tribunais colegiados e comissões legislativas. O "do contra" aqui, ainda que possa provocar brigas homéricas, é um elemento fundamental para melhorar a qualidade do trabalho.

Voltando à questão nuclear, o desastre japonês recomenda abandonar essa matriz energética? Ainda que cheio de dúvidas, respondo com um "não". É um "não" estratégico. Agora que boa parte da opinião pública deve se voltar contra a tecnologia, é prudente que algumas vozes se oponham à unanimidade e nos façam pensar duas vezes.

Autor:Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.

FONTE:JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO

COMER BEBER E CASAR É O PENSAMENTO HUMANO.