Legionário, N.º 476,
26 de outubro de
1941
JUÍZO TEMERÁRIO
[II]
Grande número de
incompreensões a respeito do assunto provém de uma análise superficial da
palavra “juízo”. Muitas são as pessoas
que receiam fazer uma suspeita desfavorável a terceiros, porque, caso a suspeita
não seja comprovada ulteriormente, terão cometido um juízo temerário. Mas uma
suspeita poderá ser considerada juízo?
Para decidir a questão,
basta recorrermos às noções correntes. O juízo, ou sentença, implica em uma
afirmação. Só fazemos um juízo acerca de alguém quando chegamos a uma certeza a
respeito desse “alguém”. Uma suspeita não constitui um juízo, e, assim, quem
suspeita de outrem não pode, propriamente, formar um juízo temerário, e isto
pela simplicíssima razão de que não chegou a estabelecer juízo algum. Com
efeito, a suspeita é uma hipótese que formulamos a respeito de uma pessoa. E a
hipótese evidentemente não é uma certeza.
Assim, ainda que
tenhamos feito sobre uma pessoa uma suspeita infundada, não teremos com isto
cometido um juízo temerário.
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*
Quer isto dizer que
podemos arbitrariamente suspeitar do próximo? Evidentemente não. O que se requer
neste assunto é simplesmente um uso correto das leis da lógica. Com efeito, há
pessoas que tomam às vezes atitudes que, em sã lógica, suscitam uma legítima
suspeita. E, neste caso, suspeitar não pode constituir um pecado. Com efeito, se
pelo emprego correto das luzes naturais que Deus nos deu chegamos a formular uma
hipótese plausível, poderá haver pecado em que demos acolhida a essa hipótese?
Evidentemente não.
Em que caso, então, uma
suspeita pode ser pecaminosa? Quando se basear em elementos logicamente
insuficientes para tal. Ou, em outros termos, quando com elementos insuficientes
para formular uma suspeita, nós entretanto a formulamos, quer por leviandade,
quer por má vontade, quer por qualquer outro defeito. Trata-se aí,
evidentemente, de um mau emprego das regras da lógica e implicitamente de uma
injustiça censurável.
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Quer isto dizer que
devemos evitar qualquer suspeita, de medo de errar?
Também não. Seria tão
estulto quanto se deixássemos de andar, de medo de escorregar e quebrar a
espinha; deixar de respirar, de medo de ingerir micróbios; deixar de comer, de
medo de assimilar alimentos nocivos à saúde.
Todos nós sabemos que o
homem é falível, e que portanto pode, ainda que contra a sua vontade, fazer uma
suspeita ou um juízo infundado. Mas se daí se devesse deduzir que jamais devemos
formular contra o próximo um juízo ou uma suspeita, erraríamos, como erraríamos
se quiséssemos promover a abolição de todos os tribunais e todas as penas,
porque os tribunais se podem enganar e as penas podem eventualmente ser
injustas.
Ao formar a respeito do
próximo nossas impressões, nossas suspeitas e nossas certezas, usemos sempre de
cautela, a que normalmente somos obrigados em questões importantes. Isto posto,
estejamos com a consciência tranqüila: não estaremos
pecando.
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Por que motivo o receio
de julgamentos errados não pode servir de fundamento para que se pleiteie a
abolição dos tribunais? A razão é evidente. A supressão dos tribunais daria
lugar a injustiças e crimes mil vezes mais numerosos e mais lamentáveis do que
uma ou outra injustiça inevitável no funcionamento de qualquer tribunal humano.
Isto posto, é no interesse da própria justiça que se deve o homem conformar com
um regime judiciário que, falível como tudo que é humano, de quando em vez
sacrifica involuntariamente algum inocente.
Este princípio pode ser
perfeitamente aplicado ao assunto de que tratamos neste artigo. Qualquer
indivíduo que, de medo de formar suspeitas infundadas a respeito dos outros,
mantivesse seu juízo perpetuamente em suspenso, causaria males certamente
maiores do que os que decorreriam de um uso criterioso de suas luzes naturais.
Demonstramo-lo no último artigo. O pai que tivesse receio de formar juízo
temerário acerca de seus filhos, procurando observá-los e discernir neles os
primeiros sintomas de alguma crise moral, prejudicaria muito e muito mais seus
filhos com isto, do que se, involuntariamente, fizesse algum dia uma suspeita
infundada, que a falibilidade humana sempre pode deixar passar. Um chefe de
empresa econômica, que deixasse de dar a devida atenção a perigosos indícios de
desonestidade de seus sócios ou empregados, por medo de fazer uma suspeita
temerária, estaria agindo de modo sumamente incorreto. Um político, um
diplomata, um professor, um advogado, um diretor de consciências, um apóstolo
leigo, que deixassem de dar o devido valor aos indícios desfavoráveis que
pudessem notar nas pessoas com quem
tratam, seriam certamente muito mais perigosos em determinadas
circunstâncias do que inimigos declarados da Religião, da família, dos
interesses dos clientes, dos alunos, etc., etc.
A esse respeito, não me
posso furtar de narrar uma interessante reflexão do saudoso e grande Dom
Duarte.
Disse-me certa vez aquele santo e imortal Prelado que “preferia lidar com um
canalha do que com um burro” - conservo textualmente a expressão. E
acrescentava: “Um canalha inteligente, se jogarmos com ele com inteligência,
poderá por nós ser reduzido à inocuidade; mas um burro
que dá coices a torto e a direito, o que não se poderá recear dele?” Quem não vê
o pleno cabimento desta reflexão do grande e santo Bispo?
* *
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Chegamos ao âmago de
nosso assunto. Andam erradamente, e muito erradamente, os que dizem que não
querem formar juízos ou suspeitas sobre os outros, porque a tal não têm direito.
Distingo. É inconveniente que andemos a fiscalizar as pessoas cuja conduta não
se encontra sob o raio de nossa autoridade. Mas que sejamos obrigados a não
formar impressões sobre aquilo que naturalmente nos salta aos olhos, na vida de
todo o dia, quem ousará sustentá-lo? Quem não percebe que se trata aí de um
processo de imbecilização que acaba por ferir os
próprios princípios de Fé e de moral? Com efeito, um homem de caráter firme e
varonil sente uma dissonância interior cada vez que nota que, em torno de si, as
coisas se passam de modo contrário à glória de Deus, à exaltação da Santa
Igreja, e da doutrina católica. Deixar de formar juízo sobre o que é evidente,
deixar de ouvir o clamor dos indícios veementes, ou é imbecilidade ou fraqueza
de princípios. Não há por onde escapar.
Assim, formar juízo e
formar suspeitas, quando isto é dirigido pelas virtudes cardeais, e não se
orienta pela ação de qualquer inclinação viciosa, é virtude e alta virtude. E
deixar de formar juízo ou suspeita quando o caso se apresenta, pode ser defeito,
e grave defeito.
* *
*
Liricamente, muita
gente costuma sustentar que “isto compete à autoridade, e como não tenho autoridade, posso dispensar-me
dessa tarefa ingrata”. E muito tolo comentará de si para si “que coração
generoso é esse, como lhe dói ver a maldade do próximo”. Certamente, há muita
generosidade em doer-se alguém da perfídia do próximo. Mas haverá generosidade
em fechar os olhos à evidência, para não sentir essa dor? Ah, como os Santos
abriram e até escancararam os olhos a essas dolorosas evidências! Como lhes
cortava o coração ver a malícia, a ingratidão, a perfídia, a lascívia dos
homens! Quantos juízos encontramos, nas obras dos Santos, juízos severíssimos e
tremendos, não só a respeito de um ou outro indivíduo nominalmente considerado,
mas ainda a respeito de cidades, povos e países inteiros! Os Santos se doíam,
mais do que ninguém, dessa realidade. Mas em vez de lhe fechar estupidamente os
olhos, abriam pelo contrário os olhos para as misérias da terra e o coração para
o Céu, em magníficos atos de reparação e desagravo a Deus. Como está longe da
conduta dos Santos certo romantismo piegas com que tantas vezes nos defrontamos
na vida! E como dói ver que essa estupidez romântica vem pregada em nome do
Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando Nosso Senhor Jesus Cristo
chamou os fariseus sepulcros caiados, o que fez senão juízo? E quando aconselhou
que tomássemos cuidado com os falsos profetas e os lobos metidos em pele de
ovelha, o que fez senão impor-nos à suspeita como importantíssimo meio para a
nossa salvação?
Uma vítima da revolução
francesa, passando por sob a estátua da liberdade, teve a exclamação famosa: “O’
liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome”. Com quanto direito poderíamos dizer por nossa vez: “O’ caridade,
quanta sandice e quanto crime em teu nome se tem
praticado”.
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Mas, sobretudo, o que
importa notar é que um observador sagaz não se improvisa. Que espécie de
autoridade será quem esteve de tapa-olhos,
ininterruptamente, durante todo o tempo em que foi súdito? Não é porventura
quando se é súdito que se deve adquirir as qualidades de um chefe? A tal ponto é
isto verdade, que todos os exércitos e todas as engrenagens das empresas
comerciais, etc., têm sua linha fixa de promoções. Não valerá isto para nós?
Ingênuos como crianças de berço até o dia em que não cai sobre os ombros uma
função de responsabilidade, o que faremos quando depender de nós a defesa dos
mais importantes interesses espirituais ou temporais, contra os lobos
disfarçados na pele da ovelha?
Decididamente,
renunciemos a toda esta pieguice. Ela só serve para prejudicar a Igreja, dando a
entender que a descrição que seus adversários fazem do “carola”, tipo imbecil de
um sentimentalismo romântico e estúpido, é produto genuíno de seu espírito.
Sursum corda. Corações ao alto. Pieguismo não
é bondade. Estupidez não é generosidade. Inocentes como as pombas, nem por isto
deixemos de ser astutos com as serpentes. É Nosso Senhor que, em termos
expressos, no-lo impõe. Queremos porventura ser melhores do que
Ele?
FONTE:http://www.pliniocorreadeoliveira.com
via: JORNALISTA JOÃO NOGUEIRA DE LIMA MTB 0060712 SP